Se você pensa que sim, não é única. Ao tratar uma doença grave, abrimos mão de muitas coisas para alcançar o melhor resultado, para buscar a cura, para viver mais. Com base nessa premissa, por muito tempo eu mesma, como oncologista, pensei, "cabelo cresce". Mas tive ao longo da carreira pacientes que simplesmente se negavam a encarar desta forma. E ouvindo-as, e me abrindo para o que realmente pode significar a perda dos cabelos, compreendi.
A perda dos cabelos não significa apenas a perda de parte de nossa identidade visual, ela envolve mudanças em nosso papel na sociedade e no mundo. A perda de cabelos imediatamente remete à associação de uma doença grave, ao sofrimento, ao risco de morte. Muitas vezes o que mais incomoda a paciente é ser identificada imediatamente com base nestes estigmas. O olhar, naqueles primeiros segundos, nos quais é impossível controlar nossos sentimentos e deixar de expressá-los, pode refletir preocupação, pena, medo. É no olhar dos outros que muitas vezes encontramos o prazer o sofrimento mais profundo. "O inferno são os outros", já dizia Sartre. Compreende? Podemos ultrapassar essas barreiras, podemos nos acostumar, aprender a lidar com esta perda, até mesmo encontrarmos novos modos de nos vermos, melhores até, com a perda dos cabelos. Mas não podemos desconsiderar o que muitas pessoas podem estar passando e sentindo, denominar este sentimento como futilidade, bobagem.
Como oncologista, presenciei muitas mudanças no tratamento ao longo das décadas, muitos avanços. O câncer não é uma doença única. Ele pode vir e ir embora, ele pode vir e ficar e ser controlado, praticamente virando uma doença crônica, ou ele pode ser fatal. Mas nada justifica que ignoremos que os pacientes, em qualquer situação, têm direito à melhor qualidade de vida possível.
A touca de crioterapia foi criada para evitar este efeito colateral indesejado. Já estamos em uso há um bom tempo e a cada dia me convenço mais que ela valhe o investimento. Muitas vezes o cabelo começa a cair nos primeiros ciclos, mas a paciente consegue mantê-lo por mais tempo, habituando-se gradualmente. Ou consegue finalizar os ciclos com cabelos em quantidade suficiente para não modificar sua aparência de maneira tão significativa. E logo os cabelos novos preenchem os vazios, do couro cabeludo e os traumas da alma. Além disso, o cabelo que vem depois de cair sofre uma mudança em sua textura que pode ser extremamente difícil de ajeitar. Isso leva a um grande período de ajustes, mesmo depois de terminada a quimioterapia, até ele crescer e "se adaptar". Mas quando usamos a touca, se a perda foi parcial, os cabelos primitivos da paciente recobrem esses fios novos, misturando-se a eles e facilitando em muito o processo.
Ela certamente não é para todas, existem pacientes que não a desejam, existem casos em que não se aplica ou que ela não ajuda. Mas a cada dia fico mais feliz como oncologista em diminuir em um número cada vez maior de pacientes este efeito tão estigmatizante. O que seria do câncer se nenhum tratamento causasse os efeitos colaterais conhecidos? Teria todo este estigma?
Deixo algumas fotos para ilustrar um pouco sobre o que falei.
E adoraria ouvir o que você pensa a respeito.